Colocando o faro jornalístico a serviço da experiência do usuário

Thiago Jansen
Magenta Brasil

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A experience director Silvia Melo conta o que leva dos seus tempos de repórter e fala dos desafios de lidar com um mercado ainda machista.

AoAo o iniciar sua carreira profissional, Silvia Melo optou pelo jornalismo na esperança de escapar de uma perspectiva de trabalho que sempre lhe causou incômodo: aquele ditado pela rotina. Para sua surpresa, no entanto, depois de anos escrevendo como repórter freelancer para o “Estadão, um dos principais jornais de São Paulo, seu objetivo só começou a ser alcançado depois que deixou de produzir conteúdo e passou a criar experiências digitais — migrando do jornalismo para a área de UX.

Sua progressão foi gradual: primeiro, atuando na arquitetura de informação de sites de companhias de mídia e conteúdo, como o do Grupo Bandeirantes de Rádio e Televisão; depois, já em uma agência de publicidade, desempenhando o papel de diretora de criação em projetos digitais para companhias como Petrobras, TIM, Sadia, Nestlé e Ambev.

“É curioso porque quando você escreve sobre o cotidiano, percebe que a cobertura é cíclica. Isso me angustiava muito. Quando migrei para a área de UX, senti que aí sim pude fugir da mesmice, pois passei a trabalhar em projetos com focos e escopos diferentes, mantendo o contato com realidades diversas, sem me ater a apenas um assunto”, afirma ela.

Hoje associate experience director no escritório da Huge em São Paulo, Silvia divide seu tempo entre a criação de experiências digitais inovadoras para marcas como FCA e Serasa, e a gestão de outros profissionais. Na conversa abaixo, ela conta como seu passado de repórter lhe ajuda na abordagem de novos projetos em UX, os desafios impostos a mulheres em mercados dominados por homens e como ela ainda busca inspiração no cotidiano — ainda que não precise mais escrever sobre ele.

UX para além do design

Quando você vai em um evento de UX fora do Brasil, a maioria das pessoas tem uma formação ligada ao design. Já aqui, acho que por conta da Internet ter se desenvolvido junto a grandes portais de notícias, que também eram provedores, acabamos tendo profissionais com um background mais variado — incluindo muitos jornalistas. Isso é algo que vejo ser mais raro lá fora.

Faro investigativo

Sem dúvida, uma coisa que eu trouxe do jornalismo, e que me ajuda muito no meu dia a dia profissional, é a prática da investigação, da pesquisa, da apuração, de procurar entender o contexto no qual estou trabalhando. Um bom projeto não existe sem que haja um problema a ser resolvido, e acho que a prática jornalística me proporcionou um faro investigativo que me ajuda a buscar as informações certas para identificá-lo. Sem dúvida, esse é um grande ponto comum entre as duas profissões.

De técnica a gestora

Nunca me vi como uma potencial líder, mas sim como uma técnica, alguém mais mão na massa. No entanto, o papel de gestora veio naturalmente na minha carreira. Atualmente, da forma como o mercado é organizado nas agências, um profissional acaba tendo que se tornar gestor para crescer — mesmo que não seja preparado para isso. É um desafio: temos o hábito de preparar bons técnicos, mas não bons gestores. Comigo não foi diferente, mas é preciso encarar que se esse agora é o seu papel, então você precisa aprender a desempenhá-lo. É preciso buscar informação para desenvolver visão de negócios e aprender a coordenar as pessoas. É um aprendizado.

Ruídos do crescimento

Tive o privilégio de ver a área de UX crescer muito no Brasil. Hoje, várias companhias, em diferentes indústrias, estão criando seus próprios times de UX. Isso é um reflexo da profissionalização da área, do fato dela estar gerando resultado para as empresas, que passam a ver a experiência como um diferencial. Mas, ainda que esse movimento seja bom, há um ruído também: como a área sempre evoluiu de forma autodidata, muitas vezes há uma percepção de que todo mundo entende de UX. Isso, em muitos casos, é um equívoco. Quando a gente começa a achar que todo mundo faz tudo, há o perigo de, na verdade, ninguém estar cuidando do produto — e do usuário.

Velado, mas presente

No Brasil, o machismo pode até ser algo velado em alguns casos, mas é bastante presente. Quando falamos em mansplaining ou manterrupting, muita gente diz que isso é “mimimi”. No entanto, são práticas comuns, que ocorrem com frequência, às vezes até em reuniões com clientes. Há também as situações em que você acaba sendo preterida por ser mulher e mãe. No passado, já ouvi, por exemplo, que não participaria de determinados projetos porque, na visão do gestor, “eu tinha outras preocupações” — como se ser mãe me impedisse de me dedicar integralmente. É curioso já que nos meus nove meses de gravidez nunca faltei um dia de trabalho — mas vi colegas homens faltando pelos mais diversos motivos.

Acho que, no final, a qualidade do seu trabalho acaba provando o seu valor. Mas, sem dúvida, é preciso brigar para que haja uma maior diversidade no mercado, em todas as áreas. E é um desafio que começa no recrutamento, na busca por bons portfólios de profissionais mulheres, que, em áreas como visual design, podem parecer mais escassos.

Cotidiano como inspiração

Adoro começar qualquer coisa que faço com uma boa investigação. Além disso, tenho um vínculo muito forte com a rua: gosto de sair, ir ao supermercado, à feira, até em reunião de síndico, ver como as pessoas interagem etc. São coisas simples, mas que me dão diversos insights. Pelo mesmo motivo, gosto de conversar com meus amigos jornalistas que cobrem temas variados, pois são pontos de contato com universos diferentes. Buscar essa pluralidade me enriquece na hora de trabalhar em projetos já que, afinal, criamos experiências para as pessoas.

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